7.1.03
cabeCERA 3
Livro: Solo feminino (Amor e desacerto)
Autora: Livia Garcia-Roza Editora Record, 2001
Passei o Natal no Oriente Médio, juro. Cara, nunca vi tanto conflito. Irmão magoado com irmão, sobrinho e tia. Papagaio e periquito. Todo Natal é assim, lá na minha casa no Recife. E no resto do mundo. No meio disso tudo, estava eu lendo, terminando de ler, dando boas risadas com o romance Solo feminino, da carioca Livia Garcia-Roza. E olha, vou dizer antes de qualquer coisa: Livia é uma grande escritora. Anote isso, senhores e senhoras. Embora, eu creia, ela sofra e aqui eu diga: preconceito dos companheiros de ofício. Explico: talvez porque ela venha envolta em capas ilustrativamente comportadas, dentro de coleções que às vezes enganam aqueles que precisam chegar ao seu texto. Eu mesmo, confesso, cheguei desconfiado ao seu universo. Meio cabreiro. Eu que me julgo desbocado. Eu que me julgo o Rei do Sovaco Preto. Senhor do Experimentalismo. Explico a aproximação feita: Livia me escreveu, um dia, no ano de 2001, para falar do "Angu de Sangue" e me convidar para uma antologia (a sair pela Record em junho deste ano). Ela havia escrito um romance chamado Cine Odeon (idem, pela Record). Li o livro e cai de quatro. Demônio dos bons essa mulher. Virada na gota. Entende tudo de romance a peste. O traçado dos personagens. A articulação dos capítulos. Nunca vi mergulhar tão bem na mente domesticada da família. Da mãe, da avó, do pai. "Cine Odeon" é de tirar o fôlego da hipocrisia. E não tem essa de final açucarado, de lar adocicado, entende? Livia escreve desregrada. Sem pudor. Bem-humorada e solta. E belamente triste. Agora, idem, ela repete a dose nesse seu novo romance. E que dose! História de uma pobre coitada, funcionária de uma empresa chamada Meio do Céu. Essa tá lascada. E mal paga. Sem contar o assédio do famigerado patrão, o incansável (e, com certeza, já nosso velho conhecido), seu Evaristo. Livia é psicanalista. E conseguiu, cronica, e não clinicamente, exportar neuroses para a sua ficção. Então: "A vida é um suicídio devagarinho", já me disse Millôr e eu concordo. Cortamos o nosso pulso a cada hora do dia. Assim, como Gilda, a protagonista: "Fiquei sozinha na sala, despencada no sofá, e uma tristeza medonha me invadiu, não consegui nem calçar os sapatos, uma fraqueza nas pernas... Mamãe me deixa totalmente sem forças, tem o dom de me arriar. Continuei tombada, me vendo sozinha naquele apartamento, com Lili trancado em seu quarto, Wilma no dela, e o canarinho cagando na área. Que bosta de vida me esperava". E aí a gente acompanha a angústia crescente da personagem. A graça e a desgraça dela. Já anunciada num belo primeiro parágrafo, este do primeiro capítulo: "Estava em lágrimas, montada na pia do banheiro, arrancando as sobrancelhas no espelho, quando o telefone tocou e uma mulher, dizendo-se amiga de uma amiga, queria falar com Gilda. Falei que era eu mesma (tenho voz de trombone, desde criança). Ela então contou que tinha perdido o marido e gostaria de entrar em contato com todas as pessoas que o conheceram, e eu era uma delas, se poderíamos nos encontrar... – A pia vai rachar!!". Com que habilidade Livia apresenta o personagem, inicia pateticamente o conflito, põe a gente dentro desse solo feminino e movediço. Longe do Oriente Médio. E tão perto de Pernambuco.
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