29.1.03
ENCONTROS INESQUECÍVEIS III
Pessoal, depois de Millôr Fernandes e de Décio Pignatari, agora é a vez do poeta Manoel de Barros.
MANOEL, O ÍNFIMO
Conheci o poeta Manoel de Barros por telefone.
Ainda no Recife, uma amiga me ligou e fulminou: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia”. E cuspiu mais: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”.
Silêncio.
Aos poucos, a palavra de Manoel vai nos colocando contra a parede. Ou melhor: a favor da parede e dos caramujos. Das coisas que ruínam, imprestáveis. “As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora”. Ou: “Escrever nem uma coisa / Nem outra / A fim de dizer todas / Ou, pelo menos, nenhumas / Assim / Ao poeta faz bem / Desexplicar / Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”.
Carmita Viana, a minha amiga, continuou o fio da conversa. O telefone fonético. O barulho que a poesia “barriana” (quero chamar assim, “barriana”) fez no chão da minha alma. Uma gota serena, sei lá. Um desvio no verbo, sei lá. Como ficar atolado numa pedra.
A segunda vez que conheci Manoel de Barros foi pessoalmente, no Carnaval de 96. Aproveitei o feriadão para visitá-lo em Campo Grande. Eu e mais dois amigos viajamos de carro 16 horas de São Paulo, 1.100 quilômetros. Abandonamos bundas e sambas. Fomos atrás do autor dos “Poemas Concebidos sem Pecado”, da “Face Imóvel”, do “Compêndio para Uso dos Pássaros”. Esquecemos das ladeiras de Olinda. A poesia mora noutros 4 cantos. Na “Gramática Expositiva do Chão”, nos “Arranjos para Assobio”, no “Livro sobre Nada”.
Imaginávamos encontrar o poeta dando miolo aos pombos. Alface aos pássaros. Ou confabulando com os bichos do mato. Cercado de peixes e cachorros e gatos. Largado num balanço de cadeira. Besteira. Manoel é normal. Veste calça e camisa social. Formou-se advogado – “das causas perdidas”, salienta. Já morou em Nova Iorque, Paris, Itália. É dono de uma fazenda no Pantanal e de algumas cabeças de gado. Sua casa, em Campo Grande, fica no Jardim dos Estados, um dos pedaços mais exuberantes da cidade.
“Estou cagando para exuberâncias”, disse Manoel. “Minha poesia trata dos seres diminutos, jogados aos farrapos”.
Diz que poesia não é paisagem. É palavra. E nisso ele chafurda bem. Tem substantivos escuros. Recusa adjetivos e advérbios. Diz que acredita no “Milagre Estético”, como todo grande poeta. “Grande poeta uma merda, sou o poeta do ínfimo. Eu sou o ínfimo”. O que dizer, então, da gente, miúdos como um carrapato?
Voltei a Campo Grande no ano de 2001 para nova visita. Para conhecer o poeta pela terceira vez. Há quem diga que o que Manoel escreve não tem importância. E não tem mesmo. Não dá, ele, importância para a importância. Seus seres são lodosos e enferrujáveis. Xô os postais poéticos de Corumbá ou da Amazônia.
Nesse novo papo, acontecido num final de semana, ele – socado num “buraco” do sofá que ele chama de “Buraco do Manoel” – falou de Millôr Fernades, João Cabral e dinheiro, enfim.
É interessante dizer que Manoel odeia gravador. E tirar fotografia. Mas tirou, autografou livros e complementou a nossa prosa por escrito, “Porque entrevista é exercício literário também”, explicou. Acompanhe os principais trechos dessa conversa logo abaixo. Depois, corra e ligue para os amigos que não conhecem o poeta. Para os que conhecem. Até para os que acham que ele não serve para a poesia.
“Muita coisa se poderia fazer em favor dela”, ele diz. “Esfregar pedras na paisagem. Jogar pedrinhas nim moscas”.
Ou, se você preferir, “Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos”.
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