15.1.03
ENCONTROS INESQUECÍVEIS
Inaugura-se hoje mais uma seção do blogueraOdito, a Encontros Inesquecíveis. Tchan tchan tchan tchan. Parece nome de enciclopédia da Abril, não parece? A pomposidade é proposital. Porque vou reproduzir, aqui, alguns belos encontros que tive com personalidades marcantes do cenário nacional e, quiçá, internacional. Começo pelo grande e genial Millôr Fernandes. A matéria foi originalmente publicada na revista pernambucana Continente Multicultural, na edição de dezembro de 2001. É isso. Espero que curtam. Vamos lá, então.
MILLÔR
E O SEU BOM HUMOR
INSUPORTÁVEL
“Fale ou fax.”
É a voz do Millôr na secretária. Millôr não está, não atende. Ou corre para atender, de repente. Simpático e boa-tarde. Parece querer dizer “Diga logo o que você quer, seja breve, pentelho”. Aqui, no Rio de Janeiro, o telefone não pára, ocupado. O Redentor não vive de braços cruzados. Consegui marcar com o Millôr. Fiz uma ponte aérea. “Você carrega algum objeto pontiagudo, senhor?”, perguntou a atendente, no checking . Carrego uma caneta. E a língua do gravador.
Era uma sexta, 21 de setembro de 2001. Dez dias depois do ataque ao World Trade Center. Encontrei Millôr em frente à TV, no seu escritório de cobertura em Ipanema. Millôr fala rápido e giratório. Eram vinte horas e alguns minutos. No Jornal Nacional, Bush desembucha um discurso de fim de primeiro mundo. Millôr reclama, diz que o William não é nada Bonner, que prefere assistir a BBC de Londres. Acompanha noticiários de todo o mundo, fala inglês, francês e italiano. É considerado um dos melhores tradutores de Shakespeare. Como é que é, Millôr, traduzir o autor de Hamlet? "É só escrever melhor que ele e pronto". Melhor que Tchecov, Fassbinder, Racine, Moliére etc.
Em cima do seu televisor, há a cabeça da Estátua da Liberdade. Não a prêmio, mas num pôster. Minha guerra com o Millôr começou. Por onde o fio da conversa? Onde está Wally bin Laden? Millôr dispara, sério: “Ele é o grande vilão da história. O mundo todo contra um homem só”. O americano entrou pelo cano. Quem ri por último ri amarelo.
Tudo ao redor do Millôr é vermelho. Estantes, quadros, as persianas vermelhas, poltronas. Livros e revistas espalhadamente organizados. Diz que um dia chegaram uns estudantes e perguntaram para ele, vermelhos também: “Que conselho o senhor dá pra gente?”. Pedir conselho logo para o Millôr, só rindo. Ele fuzilou para os meninos: “Tenham sorte”.
Millôr defende isso: “A tua sorte começa quando você nasce”. Aos vinte anos, ele já ganhava um dos maiores salários da imprensa, comprou carro, alugou uma casa para as irmãs, viajou pelo mundo. Esteve na Disney e no Egito. Já foi campeão de pesca de salmão no Canadá, sei lá.
Nasceu no bairro do Méier, no ano de 1924. Seu nome verdadeiro é Milton: “Descobri, aos 18 anos, o nome Millôr na minha certidão de nascimento. A letra do homem do cartório era tão desenhada, que você lê, facilmente, Millôr em vez de Milton Fernandes”.
Perdeu o pai não tinha nem dois anos, a mãe aos sete. Disse que já passou fome – de leve –, comeu pastel, morou longe pra xexéu.
Lembra de tudo isso e não reclama. Costuma dizer que acorda às seis horas, “Com um bom humor insuportável”. Teve muita sorte, principalmente com as mulheres – e não foi só na cama: “Começou com a minha vó. A minha vida foi cercada por mulheres. Eu devo a minha vida às mulheres. Devo a elas todo o meu sucesso”.
Conquistado à custa de muito trabalho.
É considerado um dos maiores intelectuais brasileiros dos últimos tempos. Jornalista, humorista, cronista, desenhista, pintor, poeta, teatrólogo, tradutor, roteirista etc. Discorda: “Humorista eu não sou. Por acaso, o que escrevo é que tem humor. Só quem tem humor é que sabe escrever sério”.
E escancara: “O humor é a quintessência da seriedade”. Recusa também o título de poeta. “Poeta é Manoel de Barros. Ele, sim, é um poeta”. E completa: “Eu só sou um cara que anda na rua”.
Anda e todos o cumprimentam. Millôr é boa-praça. Tem um apartamento onde mora em frente à praia. Millôr é o Rio de Janeiro. É só fazer sambar três letras de seu nome. O Rio aparece sem tirar nem pôr, como um sol no Arpoador. Millôr também é Miró. É só abrir o acento. Mas nem sei se ele gosta do pintor espanhol. Na entrada da cobertura, vi um pôster de Picasso. A porta, também vermelha – não lembro – parecia a do palácio de Salvador Dali. Um gênio.
“Não gosto de ser chamado de gênio. Eu não sei fazer nada. Eu faço as coisas o melhor possível com medo de que as pessoas achem uma merda. Então talvez seja por isso que eu faço muito melhor, entende?”.
Fomos continuar nossa conversa em um restaurante. Os garçons sabem o que o Millôr come, já providenciam o pão – “com cara de pão” – que ele gosta. “Niemeyer acabou de sair, perguntou pelo senhor”, disse o maître, no melhor humor.
No final do jantar, Millôr pagou a conta. Fiquei sem graça, mas tudo bem.
Sou um homem de sorte ou não sou?
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