29.1.03
TRECHOS DA CONVERSA
COM O POETA MANOEL DE BARROS
MILLÔR FERNANDES
Foi o Millôr quem primeiro falou de minha poesia. Me deu um empurrãozinho. Escreveu lá no espaço que ele tinha diariamente no Jornal do Brasil: “Olha só, macacada: poesia é isto”. E transcreveu um poema meu. Aquilo teve uma repercussão grande. Depois, ele que me apresentou ao Antônio Houaiss, que me apresentou ao Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. Antes, eu só publicava por editoras pequenas, sem importância. Millôr me deu a maior colher de chá.
O PANTANAL.
Não ligo para a exuberância do Pantanal. Ser chamado de “poeta pantaneiro” me irrita profundamente. Poesia é palavra, não é paisagem. Eu mexo com palavras, meu texto não situa lugares. Eu não sou um poeta regional. Eu sou poeta. Uma jornalista do Jornal do Brasil uma vez me perguntou, no Rio, se eu estava sentindo falta do Pantanal. Eu falei, “eu gosto mais é do Leblon”. Ela fez uma manchete com isso. Achei engraçado.
MILAGRE ESTÉTICO.
O verdadeiro artista está à procura do “Milagre Estético”. Aprendi essa com o Borges. Poesia não é informação. É linguagem. É substantivo e verbo. Um equilíbrio sonoro das palavras, das letras, das frases. Uma eufonia. Esse equilíbrio é que produz a harmonia. O que a palavra entoa é mais importante do que o que a palavra diz.
DINHEIRO.
Escrevi um livro sobre nada e ganhei 50 mil reais. Um amigo me ligou dizendo que a Academia Brasileira de Letras me concedeu um
prêmio. Foi aquele meu livro infantil “Exercícios de Ser Criança”. Perguntei logo: tem gaita? O que é que eu ia fazer na academia se o prêmio não tivesse dinheiro? Ganhei 30 mil. Bom, né? Meus livros vendem bem. O que vendeu mais foi o “Livro das Ignorãças”. 60 mil exemplares até agora. Vender isso com poesia é muito. Não posso comparar com outras coisas que vendem melhor. Perto do Paulo Coelho eu sou uma formiga desprezada.
VIAGENS.
Sempre tive uma curiosidade primitiva. Sede de experiência do primitivo. Deixei o Rio e fui conhecer a Bolívia, o Peru. As tribos indígenas de lá. Vivi um tempo com os índios. Depois fui parar em Miami, com meu inglês escalafobético. Morei numa pensão em Miami. Meu inglês era bom só para pedir comida e para “I love you”. Depois é que fui para Nova Iorque. Morei um ano em Nova Iorque. Eu tinha 27 anos nessa época. Vi muitos filmes do mundo inteiro que eles tinham lá. Sempre gostei muito de cinema. Fiz um curso de cinema como ouvinte. Um curso de cinema no MoMa. Morava ali perto da 47. Lá eu pude conhecer a arte de Picasso, Chagal, Paul Klee.
VIDA DE ADVOGADO.
Não sei nada de Direito. Nunca estudei muito. Sempre fui tímido demais. Eu era insuficiente. Um homem dotado de fragilidade intelectual. Com a minha timidez, sensibilidade, não podia nunca pegar, defender uma causa de qualquer sujeito. De um pobre-coitado. Só me formei advogado para dar alegria para minha mãe. Mesmo assim, dei muito desgosto para ela. Dei muito desgosto para minha mãe. Viajar pelo mundo ela não via com bons olhos. Eu queria fazer concurso para o Itamaraty. Ela não queria, chorava. Diplomata some no mundo. Ela pedia pelo amor de Deus. Não fiz. Ganhei mais do que perdi com isso.
GUIMARÃES ROSA.
Fiquei encantado com o livro do Rosa, o “Sagarana”. Sou encantado com a obra toda dele. Fiquei sabendo que o Rosa vinha visitar o Pantanal. Ele vinha de trem. O trem parou em Porto Esperança. Parava para o pessoal pegar um vapor para Corumbá. Peguei esse vapor só para conhecer o Rosa. Nem dormi na noite anterior. Guimarães era um mito para mim. Cheguei perto e ele estava se abanando com um leque. Corumbá é muito quente, moscas perseguindo ele. Ele estava sentado na proa do navio quando eu me aproximei. Na cabeça da gente, o nosso ídolo não é gente. Rosa era. Rosa era simples. Não dava para entender um gênio assim, comum. Eu disse uma frase para chamar a atenção dele. Não lembro da frase. Ele puxou conversa. Depois encontrei outras vezes com o Rosa no Rio de Janeiro. No Itamaraty. Dei um livro para ele, o “Compêndio para Uso dos Pássaros”. Ele falou: “Manoel, isso aqui está um doce de coco”. Era a maneira que ele tinha de elogiar. Depois, acompanhei o Rosa em alguns passeios ao zoológico. Ele, com um caderninho, anotando frases. Anotando gestos dos bichos. Via o hipopótamo, anotava. A girafa, o leão.
JOÃO CABRAL.
O João Cabral descobriu que eu falava e lia em francês. Ele me pediu para traduzir um poema chamado “Le Musèe Gravin”, do poeta Aragon – um grande poeta da França. E depois ele queria que eu recitasse o poema numa rádio, pode? O Cabral era encarregado de procurar os poetas para fazer traduções, para se apresentar nessa rádio, num programa apresentado por uma francesa. “Mas eu não falo no rádio. Eu sou muito tímido”, eu dizia. Ele não acreditou. Fui lá na rádio. Causei o maior vexame. Olhe, João Cabral é um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Ele enxugava, chupava até as tripas das palavras. Seco demais. Substantivo demais. Verbo demais.
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