26.4.04
FOME ZERO
Pessoal, pára tudo, larga e abandona. Chega! Preciso dizer o que aconteceu comigo e com todo mundo lá no Recife, neste fim de semana. É só isso o que preciso dizer. É só isso o que me sustenta agora. Explico: fui convidado pelos produtores para ver o espetáculo homônimo que utiliza contos do meu livro Angu de Sangue (dois dos contos são do BaléRalé). Pois é: esqueça que sou eu o autor dos "monólogos", ora. O que vi não tem tamanho. É tão grande o que vi que meu fôlego não dá conta. Os caras fizeram um espetáculo inesquecível. Ohhhhhh! "Há tempo o Recife não via uma coisa igual", disse-me pessoalmente um dos críticos etc. e tal. "O Recife e o Brasil", acrescentou outro. Encenação que diz xô à "estagnação". Expressão, assim, colhida de Ivana Moura, jornalista do Diário. Angu é uma encenação nervosa, líquida, caótica, humana. Poderosa é a trilha sonora original feita por Henrique Macedo, um dos nomes-referência pré e pôs Chico Ciência. A direção de Marcondes Lima, a coisa mais brutalmente limpa. Porra! Meus personagens desfilavam por um "red carpet", como disse o diretor, passeavam "sobre simbólicas tiras de papel-jornal, rubras ruas, vias e veias". E os atores, o que dizer deles? Nem sou eu quem diz. Quem esteve lá saiu fodidamente comovido. Desde o espectador mais alheio até aqueles mais tarimbados no ofício. O elenco bárbaro, barbarizando. Meus contos ganharam voz no grito. O conto Muribeca, interpretado por Fábio Caio, no começo da peça, caralho! O diretor fez do ator uma mulher meio urubu, morando dentro de uma geladeira, isso, pois é, onde a catadora de lixo guarda carne, pão velho, Coração de Jesus, roupa e retrato de família. Que família?!! Cada cena vista e acompanhada por um telão, com imagens belisíssimas, gravadas e editadas e exclusivas. Ou seja: a montagem une o cinema pernambucano à música pernambucana e ao teatro áureo. Meu texto, com isso, se sente lisonjeado. Um prêmio. André Brasileiro interpretando o mendigo ou a bicha nostálgica é coisa que não sai do meu riso e do meu juízo. A atriz negramente maravilhosa, Gheuza Sena, fez do conto Darluz algo que desconcertou a platéia, na ferocidade de sua verdade e de sua miséria. A outra atriz, Hermyla Guedes, canta, na íntegra, o conto Socorrinho, que virou rap e maracatu. E taquicardia de poesia, sei lá. O Ivo Barreto, em interpretação psicótica do conto homônimo, é extraordinariamente doentil. Puta que pariu! Pegue um avião, ora essa. Todos lá. Se não for verdade o que digo, devolvo a passagem e o ingresso. Repito: sob a direção detalhista do jovem Marcondes e com a produção impecável do André e a luz de Jathyles Miranda, putz-grila, meu Angu ganhou sobrevida. Juro. Sem contar a homenagem feita ao ator Pernalonga, assassinado em Olinda. Em resumo: esqueça, como já disse, que sou eu o autor. Eu não sou. Os contos são agora de quem chegar para a comilança. Abastecido e comovido e realimentado por eles, é que retornei a São Paulo neste domingo, de volta à contradança. Que ironia! O que eu pensava ser o Angu da minha (nossa) desgraça, agora é a minha única esperança. Valeu, moçada!
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